sábado, 23 de janeiro de 2010

Duas coisas enchem a mente...

«Duas coisas enchem a mente de... espanto e respeito... o céu estrelado acima de mim e a lei moral dentro de mim.»

Immanuel Kant, in Crítica da Razão Prática

domingo, 10 de janeiro de 2010

Lugar que não se quer mostrar

Nos meus pensamentos
Há um lugar que não se quer mostrar,
Lugar lotado de segredos
E mistérios por desvendar.

Frases ficaram escondidas
E tantas vezes podiam ter feito
Sonhar as gentes que, intrigadas,
Me olham com olhar desperto.

O que fazer para acordar
Esta mente que, outrora,
Lívida e cheia de vontade de falar
Se calou com medo de errar?

Sara Gonçalves,
Braga, 19h55, 10 de Janeiro de 2010.


Acariciar o papel com todos os sonhos

Tudo navega na minha mente, as palavras misturam-se, os conceitos destroem-se, as memórias apagam-se. Tento falar e em nenhum outro lugar me sei expressar tão bem como no papel que tenho à frente. A vida é conduzida pela arte que cada um domina. A minha arte é acariciar o papel com todos os sonhos que de outra forma não consigo expressar nem tão-pouco realizar. Se falar não os sei, só escrevendo posso transformar o meu nada no meu tudo e, através do meu tudo, chegar ao nada ou tudo dos outros. Se é nada ou tudo, isso só eles sabem.


Saiu-me.

sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

Neve Preta?

"Bem sei que estamos fora da estação: o Inverno já lá vai, temos agora aí o calor, a praia, as sombras das grandes árvores, o sol duro que nos amolece, as tardes apetecidas, as noites mornas que ondu­lam como pesados e macios veludos negros. Falar de neve em Junho mostra uma lamentável falta de sentido da oportunidade. Mas, tal como debaixo dos pés se levantam os trabalhos, também o acaso dos encontros pode inverter a ordem das estações e trazer o Inverno para o pino do Verão e fazer passar por nós um terrível frio que nenhum agasalho será capaz de vencer. Porque, não me cansarei nunca de o dizer, é preciso muito cuidado com as crianças.
Estes pequenos filhos dos homens têm andado pelas minhas crónicas. Mas de crianças tenho falado como quem as conhece bem, só porque também por lá passou. E agora pergunto: que são as crianças? Dez mil pedagogos se preparam para me responder. Afasto de antemão as respostas, umas que já conheço, outras que adivinho, e torno a perguntar: que são crianças?
Que seres estranhos são esses que viram para nós os seus ros­tos frescos, que nos perturbam às vezes com um olhar subitamente profundo e sábio, que são irónicos e gentis, débeis e implacáveis, e sempre tão alheios? Temos pressa de os ver crescer, de os admitir no clã dos adultos sem surpresas. Somos impacientes, nervosos, por­que estamos diante de uma espécie desconhecida... Quando passam a ser nossos iguais, falamos-lhes da infância que tiveram (a que recordamos, como observadores do lado de fora) e sentimo-nos quase ofendidos porque eles não gostam de ouvir lembrar uma situação em que já não se reconhecem. São adultos, agora: outra espécie humana, portanto.
Nessa infância está, por exemplo, a história que vou contar e que devo a um desses tais encontros de acaso. E depois de eu a reproduzir aqui, dir-me-ão se não tenho razões para insistir: é pre­ciso cuidado com as crianças... Não o cuidado comum, que tende a prevenir acidentes, aqueles que aparecem sob esta rubrica nas notícias dos jornais, mas um outro cuidado, mais melindroso e subtil. Eu explico.
Uma professora mandou um dia aos seus alunos que fizessem uma composição plástica sobre o Natal. Não falou assim, claro. Disse uma frase como esta: «Façam um desenho sobre o Natal. Usem lápis de cores, ou aguarelas, ou papel de lustro, o que qui­serem. E tragam na segunda-feira.» Assim ou não assim, os alunos fizeram o trabalho. Apareceu tudo quanto é costume aparecer nes­tes casos: o presépio, os Reis Magos, os pastores, S. José, a Virgem e o Menino Jesus. Mal feitos, bem feitos, toscos ou apuradinhos, os desenhos caíram na segunda-feira em cima da secretária da professora. Ali mesmo ela os viu e apreciou. Ia marcando «bom», «mau», «suficiente», enfim, os transes por que todos nós passámos. De repente... Ah, mas é preciso muito cuidado com as crianças! A professora segura um desenho nas mãos, e esse desenho não é melhor nem pior que os outros. Mas ela tem os olhos fixos, está perturbada; o desenho mostra o inevitável presépio, a vaca e o burrinho, e toda a restante figuração. Sobre esta cena sem mistério cai a neve, e esta neve é preta. Porquê?
«Porquê?», pergunta a professora, em voz alta, à criança. O rapa­zinho não responde. Talvez mais nervosa do que quer mostrar, a professora insiste. Há na sala os cruéis risos e murmúrios de rigor nestas situações. A criança está de pé, muito séria, um pouco tré­mula. E, por fim, responde: «Fiz a neve preta porque foi nesse Natal que a minha mãe morreu...»
Daqui por um mês chegaremos à Lua. Mas quando e como che­garemos nós ao espírito de uma criança que pinta a neve preta por­que a mãe lhe morreu?"


José Saramago

Deste Mundo e do Outro. Lisboa, Editora Arcádia, 1971, pp. 190-192.