segunda-feira, 25 de abril de 2011

"O Futuro" - para celebrar o 25 de Abril de 1974

Isto vai meus amigos isto vai
um passo atrás são sempre dois em frente
e um povo verdadeiro não se trai
não quer gente mais gente que outra gente

Isto vai meus amigos isto vai
o que é preciso é ter sempre presente
que o presente é um tempo que se vai
e o futuro é o tempo resistente

Depois da tempestade há a bonança
que é verde como a cor que tem a esperança
quando a água de Abril sobre nós cai.

O que é preciso é termos confiança
se fizermos de maio a nossa lança
isto vai meus amigos isto vai.


José Carlos Ary dos Santos

quinta-feira, 21 de abril de 2011

9º Encontro Nacional de Professores de Filosofia

Sobre o 9º encontro nacional de professores de Filosofia, a realizar nos dias 9 e 10 de Setembro, em Braga: http://filosofiaes.blogspot.com/2011/03/9-encontro-nacional-de-professores-de.html.

quarta-feira, 20 de abril de 2011

“A Caixa”: duas teorias éticas distintas

O conto que acabámos de ler está carregado de problemas filosóficos interessantes. Atentemos, em particular, nas duas teorias éticas defendidas pelas personagens principais da história.

O critério de moralidade kantiano afirma que devemos guiar toda e qualquer acção pela razão pura. Agir autonomamente é agir de acordo com o dever e, portanto, segundo o imperativo categórico. Uma acção é boa sempre que respeite regras morais absolutas (absolutas, uma vez que servem para todos os indivíduos dotados dessa mesma razão).

Já em Stuart Mill, a principal figura do Utilitarismo Clássico, não existem regras morais absolutas e só as consequências dos nossos actos importam - daí que esta seja uma teoria consequencialista e não deontológica (como a de Kant). Se mentir irá permitir contribuir, num momento x, para um maior bem-estar de todos, então há que mentir e isso não é moralmente incorrecto. O princípio de utilidade, formulado pela primeira vez por Jeremy Bentham, apresenta-se, em termos gerais, como «a maximização do bem-estar geral». Este bem-estar é, em última instância, aquilo que entendemos por felicidade.

No conto de R. Matheson, Norma deixa-se claramente guiar pelo desejo de obter um maior bem-estar: seria óptimo poder comprar uma casa maior e fazer a viagem dos seus sonhos juntamente com o marido. Para isso bastaria carregar num botão e aceitar a consequência: a morte de um desconhecido. Ora, duas utilidades positivas (a de Norma e a de Arthur) são preferíveis a uma utilidade negativa (a morte de alguém que não se conhece), segundo a ética utilitarista.

Arthur pode, contrariamente à sua esposa, ser considerado um adepto da deontologia kantiana, uma vez que considera errado utilizar alguém como um meio para atingir um fim (ainda que com essa atitude obtivesse um maior conforto financeiro). ‘O problema, Norma’, disse Arthur, ‘é que não interessa nada quem é que se mata. Matar é matar, ponto!’. De outra maneira: matar é violar uma regra moral absoluta. E não interessa a felicidade que se pode vir a obter, pois ela faz parte do contingente. O importante é respeitar o outro da mesma forma que queremos que o outro nos respeite.


Sara Gonçalves

"A Caixa", de Richard Matheson

O embrulho estava no chão, à frente da porta – era uma caixa cúbica,

selada com fita adesiva, e com os nomes e o endereço dos destinatários,

escritos à mão: Sr. e Sr.ª Arthur Lewis, 37ª Rua, 217 E, Nova Iorque,

10016. Norma agarrou nele, abriu a porta e entrou no apartamento.

Lá fora, anoitecia.

A mulher entrou na cozinha, pôs as costeletas de borrego a grelhar,

serviu-se de uma bebida e sentou-se para abrir o embrulho.

Continha uma simples caixa de madeira, com um comando acoplado

e munido de um único botão; este estava coberto por uma campânula de

vidro. Norma tentou retirá-la, mas estava presa por uma pequena fechadura.

Virou o aparelho ao contrário e descobriu uma folha de papel dobrada

que estava colada ao fundo por um pedaço de fi ta adesiva. Arrancou-a:

«O Senhor Steward irá contactá-los às oito da noite.»

Norma pousou a caixa no sofá, ao lado dela. Sorveu um gole da bebida

e releu o bilhete. Sorriu.

Passados uns instantes, levantou-se e foi para a cozinha fazer a salada.

A campainha soou às oito em ponto.

‘Eu vou lá’, disse Norma, em voz alta, da cozinha; Arthur estava a ler

um livro na sala de estar.

Norma abriu a porta e viu um homem baixo com óculos; ele tirou-os

e perguntou com delicadeza:

‘É a Senhora Lewis?’

‘Sou.’

‘Sou o Senhor Steward.’

‘Oh, pois é’, respondeu Norma, extinguindo um sorriso: é mesmo

uma demonstração de venda de produtos para o lar, como pensei.

‘Posso entrar?’, perguntou o Senhor Steward.

‘Estou ocupada’, disse Norma. ‘Mas espere que eu vou buscar a sua

geringonça.’ Virou as costas, deixando a porta aberta.

‘Não quer saber o que é?!’

Norma parou e virou-se para trás. O Senhor Steward usara um tom

de voz agressivo.

‘Não’, disse ela. ‘Acho que não.’

‘Olhe que pode vir a dar-lhe muito jeito’, disse Steward.

‘Como? Dá dinheiro?’

O Senhor Steward acenou com a cabeça.

‘Dá dinheiro’, disse ele.

Norma franziu o sobrolho. Não estava a gostar daquela atitude.

‘Mas o que é que o senhor anda a vender?’, perguntou-lhe.

‘Eu não ando a vender nada’, respondeu o Senhor Steward.

Nesse momento, Arthur veio à porta.

‘O que é que se passa?’, perguntou ele. O Senhor Steward apresentou-se.

‘Ah, pois é… O tal coiso que está ali…’ Apontou na direcção da sala

de estar e sorriu. ‘Afinal, aquilo é o quê?’

‘Não demoro nada a explicar-vos’, disse o Senhor Steward. ‘Posso entrar?’

‘Olhe que se é para vender alguma coisa…’, disse Arthur.

‘Não ando a vender nada’, disse Steward, abanando a cabeça. Arthur

olhou para Norma.

‘Tu é que sabes’, disse ela. Arthur hesitou.

‘Porque não?’, disse.

Entraram na sala e o Senhor Steward sentou-se na cadeira de Norma;

enfi ou a mão no bolso do casaco e retirou um envelope fechado.

‘Aqui dentro está a chave que abre a fechadura da campânula que protege

o botão’, disse ele, pousando o envelope sobre a mesinha de apoio que

estava ao lado da cadeira. ‘Ele acciona um alarme no nosso escritório.’

‘E para que é que serve?’, perguntou Arthur.

‘Quando se carrega no botão’, esclareceu o Senhor Steward, ‘algures

no mundo morre alguém que o detentor da caixa não conhece. Em contrapartida,

cada vez que se carrega no botão, aquele que possui a caixa

recebe de imediato a quantia de 50.000 dólares.’

Norma examinou o baixote com interesse. Ele sorriu-lhe.

‘Que história vem a ser essa?’, perguntou Arthur. O Senhor Steward

olhou-o, surpreendido.

‘Acabei de lha explicar.’

‘Está a gozar connosco?’

‘De maneira nenhuma. Falo muito a sério.’

‘Mas é que só pode estar a brincar, de certeza’, desabafou Arthur. ‘Acha

que a gente acredita nisso?’

‘Qual é a empresa que o senhor representa?’, perguntou Norma. O

Senhor Steward mostrou algum desconforto.

‘Receio que não possa dizer-lhe’, comentou. ‘Todavia asseguro-lhe

que se trata de uma grande organização internacional.’

‘Acho que é melhor o senhor ir-se embora’, disse Arthur, levantando-

-se. O Senhor Steward fez o mesmo.

‘Com certeza.’

‘E leve a caixa do botão consigo.’

‘De certeza que não querem que a deixe com vocês, à experiência?’,

perguntou Steward. ‘Talvez por um dia ou dois?…’

Arthur agarrou na caixa e no envelope e devolveu-os ao Senhor

Steward; depois saiu da sala e escancarou a porta da rua.

‘Fique com o meu cartão’, disse Steward, deixando-o sobre o aparador

que estava junto à porta. Quando saiu, Arthur rasgou-o ao meio e atirou

com as metades para cima do aparador.

‘Meu Deus!’, disse ele. Norma ainda estava sentada no sofá.

‘O que é que tu achas que ele queria da gente?’, perguntou ela.

‘Não sei, nem quero saber’, respondeu Arthur. Norma tentou mostrar-

se descontraída, mas não foi capaz.

‘Não tens vontade de saber que caixa seria aquela?’

‘Não’, respondeu o marido, abanando a cabeça.

Depois de Arthur regressar à leitura, Norma foi lavar a louça do jantar.

‘Porque é que não queres falar disto?’, perguntou Norma, mais tarde.

Arthur revirou os olhos, enquanto escovava os dentes. Olhou para o

refl exo de Norma no espelho da casa de banho.

‘Não tens curiosidade?’, insistiu ela.

‘Tenho asco’, disse Arthur.

‘Já percebi, mas…’, disse Norma, enrolando uma madeixa de cabelo,

‘…não te sentes, também, minimamente intrigado?’

Arthur não disse nada. Quando se foram deitar, ela insistiu:

‘Achas que era uma partida?’

‘Acho’, disse Arthur. ‘Acho que era uma partida de muito mau gosto.’

Norma sentou-se na cama e descalçou os chinelos.

‘Se calhar, faz parte de alguma pesquisa psicológica’, disse ela.

‘Se calhar’, comentou Arthur, encolhendo os ombros.

‘Talvez um milionário excêntrico esteja por trás disto.’

‘É possível.’

‘Não queres descobrir?’

Arthur abanou a cabeça.

‘Mas porquê?’, perguntou a mulher.

‘Porque é imoral’, disse ele. Norma enfi ou-se debaixo dos cobertores.

‘Olha, eu acho que é uma coisa muito curiosa.’

Arthur apagou a luz e virou-se para lhe dar um beijo.

‘Boa noite’, disse ele.

‘Boa noite’, disse Norma. Deu-lhe uma palmadinha no ombro. Em

seguida, fechou os olhos.

50.000 dólares, pensou.

De manhã, enquanto saía de casa, Norma viu o cartão rasgado em cima

do aparador. Sem pensar, guardou-o dentro da bolsa. Depois trancou a

porta e entrou com Arthur no elevador.

Durante o intervalo para o café, a meio da manhã, Norma retirou as

metades rasgadas do cartão e juntou-as. Só tinham o nome e o número de

telefone do Senhor Steward.

Depois do almoço, voltou a tirar o cartão de dentro da bolsa e colou

as metades com fi ta adesiva. Porque é que estou a fazer isto?, pensou.

Não foi capaz de esperar pela hora de saída para ligar ao Senhor

Steward. Ainda nem eram cinco horas.

‘Boa tarde’, disse o homem ao telefone.

Norma esteve por uma unha negra para desligar, mas resistiu. Pigarreou

e disse:

‘É a Senhora Lewis.’ Do outro lado da linha, o Senhor Steward mostrou-

se satisfeito. ‘Estou interessada em saber mais coisas sobre a caixa’,

continuou Norma.

‘Compreendo’, disse o Senhor Steward.

‘Não é que acredite na história que nos contou ontem…’

‘Oh, mas olhe que é verdadeira’, afi ançou Steward.

‘Seja como for…’, continuou Norma, ‘…quando o senhor disse

que morria uma pessoa no mundo… O que é que quis dizer com

isso?’

‘Quis dizer isso mesmo’, disse ele. ‘Pode morrer qualquer pessoa.

A única garantia é que será sempre alguém que vocês não conhecem.

Nem verão ninguém a morrer, como é evidente.’

‘Por 50.000 dólares?’, perguntou Norma.

‘Exactamente.’

A mulher deixou escapar um riso de incredulidade.

‘Mas isso é uma loucura!’

‘Que seja, mas é o que temos para oferecer’, disse o Senhor Steward.

‘Deseja reaver a caixa?’

Norma engoliu em seco.

‘Claro que não!’

Bateu com o auscultador do telefone.

O pacote estava no chão, à frente da porta. Norma viu-o, assim que saiu

do elevador.

Que atrevimento, pensou.

Observou o embrulho, enquanto abria a porta. Não vou apanhá-lo,

pensou. Entrou em casa e foi preparar o jantar.

Mais tarde, com uma bebida na mão, dirigiu-se à porta da rua. Abriu-

-a, agarrou na caixa e levou-a para a cozinha. Deixou-a em cima da mesa.

Sentou-se na sua cadeira na sala de estar, a bebericar e a espreitar pela

janela; passados uns momentos, regressou à cozinha para virar as costeletas

em cima da grelha. Guardou a caixa num dos armários da bancada.

Amanhã deito isto fora.

‘Se calhar, anda por aí um ricaço qualquer a pregar partidas às pessoas’, disse

Norma. Arthur, que estava a comer, olhou confundido para a mulher.

‘Não percebo.’

‘Qual será o objectivo?’

‘Esquece isso’, disse ele.

‘E se for a sério?’, perguntou ela. Arthur olhou para ela em silêncio,

durante uns instantes.

‘Está bem!’, disse ele, incrédulo. ‘E se for? O que é que queres fazer?

Pedir a caixa para carregar no botão? Queres matar alguém?’

Norma fez uma careta de repulsa.

‘Matar?!’

‘Pois!’, disse Arthur. ‘Que outra coisa pode ser?’

‘Mas a gente nem sequer conhece as pessoas que…’, disse Norma.

Arthur fi cou atónito.

‘Estás a falar a sério?’, perguntou ele.

‘E se for algum campónio lá na China, a quilómetros e quilómetros

de distância? Ou algum negro, em África, que já esteja doente e tudo?’

‘E se for um bebé americano?!’, perguntou Arthur. ‘Ou alguma rapariga

bonita que more na nossa rua?’

‘Estás a complicar as coisas.’

‘O problema, Norma’, disse Arthur, ‘é que não interessa nada quem é

que se mata. Matar é matar, ponto!’

‘O que se passa contigo é que mesmo que morra alguém que a gente

nunca viu’, disse Norma, ‘alguém que a gente nunca irá ver, que nem sequer

saberemos que morreu, continuarás a não querer carregar no botão.’

Arthur fi cou lívido.

‘Com isso estás a querer dizer que tu carregavas?’

‘São 50.000 dólares, Arthur…’

‘O que é que o dinhei…’

’50.000 dólares!’, interrompeu Norma. ‘É uma oportunidade de podermos

fazer a viagem à Europa que sempre quisemos.’

‘Não, Norma.’

‘E de comprar uma casa de férias.’

‘Não, Norma.’ Arthur estava sem pinga de sangue. ‘Não, p’lo amor de

Deus!’

A mulher estremeceu.

‘Está bem, acalma-te’, disse ela. ‘Não é preciso exaltares-te, estamos só

a conversar.’

Depois do jantar, Arthur foi ler para a sala de estar, mas antes de se

levantar, disse à mulher:

‘Se fazes favor, não quero voltar a falar neste assunto.’

‘Por mim, tudo bem’, respondeu Norma, encolhendo os ombros.

Norma levantou-se mais cedo que o habitual para fazer o pequeno-almoço

ao marido: panquecas e ovos com bacon.

‘A que se deve este tratamento?’, perguntou Arthur, com um sorriso.

‘A nada em especial’, disse ela, melindrada. ‘Quis fazer-te uma surpresa,

só isso.’

‘Oh, está bem’, disse o homem. ‘Fico muito contente.’

Ela serviu-lhe mais uma chávena de café.

‘Quis mostrar-te que não sou…’ Encolheu os ombros.

‘Que não és o quê?’

‘Egoísta.’

‘E eu disse que tu eras egoísta?’

‘Ora…’ Norma fez um gesto vago com a mão. ‘Ontem à noite…’

Arthur não disse nada.

‘Naquela conversa toda sobre a caixa’, continuou Norma, ‘acho que tu

não me percebeste.’

‘Então, porquê?’, perguntou ele, de maneira defensiva.

‘Tu achaste que eu…’ Norma fez outro gesto vago. ‘Tu achaste que eu

só estava a pensar em mim.’

‘Ah!…

‘Mas não estava.’

‘Norma…’

‘Não estava, Arthur! Quando me lembrei da viagem à Europa e da

casa de férias…’

‘Norma, porque é que te estás a deixar afectar por isto desta maneira?’

‘Não estou a deixar-me afectar por nada.’ Inspirou fundo. ‘Só estou a

querer dizer que…’

‘A querer dizer o quê?’

‘Que gostaria que nós fôssemos à Europa. Gostaria que nós tivéssemos

uma casa maior, com uma mobília mais elegante, que a gente se

vestisse com roupas mais bonitas. Gostaria que a gente tivesse um fi lho,

também.’

‘Mas a gente vai ter’, disse Arthur.

‘Quando?’

Arthur olhou-a, desconsolado.

‘Norma…’

‘Quando?’

‘Estás a dizer que…’ Arthur recostou-se na cadeira. ‘Estás mesmo a

querer dizer que tu?…’

‘Estou só a dizer que aquilo deve fazer parte de uma pesquisa psicológica’,

interrompeu Norma. ‘Querem avaliar o que é que as pessoas

normais, como nós, fazem quando confrontadas com uma escolha destas.

Estão a dizer-nos que vai morrer alguém só para testar as nossas reacções,

se elas são de culpa, de ansiedade, sei lá! Não achas que vão mesmo matar

alguém, pois não?’

Arthur não respondeu, mas Norma viu as mãos dele a tremer. Instantes

depois, o homem levantou-se e saiu para o trabalho.

Norma permaneceu sentada à mesa, olhando, absorta, para a sua

chávena de café. Vou chegar atrasada ao trabalho, pensou. Encolheu os

ombros. O que é que isso interessa? Em casa é que eu deveria estar todos os

dias e não no escritório.

Enquanto arrumava a louça, virou-se, abruptamente, para o armário

da bancada: secou as mãos e retirou o pacote lá de dentro. Abriu-o e colocou

a caixa com o botão em cima da mesa.

Ficou a olhar para ela durante bastante tempo, antes de tirar a chave

de dentro do envelope. Abriu a fechadura e retirou a campânula de vidro.

Olhou para o botão. Isto é tão ridículo, pensou. Tanta coisa por causa de um

botão tão pequeno.

Sem mais delongas, pressionou-o.

Por nós, Arthur, pensou, com intensidade.

O gesto não demorou nada. Sentindo-se manipulada, Norma soltou

um riso de escárnio. Parva, pensou. Deixaste-te irritar por uma coisa que

não tem importância nenhuma.

Norma acabara de virar os bifes no grelhador, para o jantar, e preparava

uma bebida, quando ouviu o telefone tocar. Atendeu.

‘Estou?’

‘Senhora Lewis?’

‘A própria.’

‘Fala do Hospital de Lenox Hill.’

Norma sentiu-se como num sonho enquanto ouvia aquela voz a informá-

la do acidente que ocorrera no Metro, naquele dia – a multidão em

fúria, Arthur a cair da plataforma para a linha no momento em que passava

o metro… Norma teve ideia de que abanava repetidamente a cabeça,

mas não foi capaz de parar.

Ao desligar o telefone, lembrou-se que o seguro de vida de Arthur

deveria deixá-la confortável. Sempre eram 25.000 dólares, que duplicavam

em caso d…

‘Não!’

Não conseguia respirar. Esforçou-se por se manter em pé e caminhou,

sem forças, para a cozinha. Uma sensação fria e desconfortável pressionou-

lhe a nuca, enquanto esgravatou no caixote do lixo para resgatar a

caixa com o botão. A caixa não tinha parafusos e Norma não fazia ideia de

como é que ela havia sido construída.

De repente, bateu com a caixa na borda do lava-louça – cada investida

mais violenta que a anterior até a madeira rachar. Norma forçou a caixa

a abrir, enfi ando lascas na carne, mas nem sequer deu por isso. Com os

dedos a sangrar, olhou para o interior da caixa.

Não havia fi os nenhuns. Nem um transístor, nem tubos, nem nada.

O telefone tocou, fazendo-a gritar de susto.

Caminhou, atabalhoada, para a sala de estar e encostou o auscultador

ao ouvido.

‘Senhora Lewis?’

Era o Senhor Steward.

Norma nem deu conta da profunda agonia contida no tom agudo de

voz com que acusou o homem:

‘Você disse que morreria alguém que eu não conhecesse!’

‘Minha cara senhora’, disse Steward. ‘Você alguma vez pensou que

conhecia mesmo o seu marido?’

quinta-feira, 14 de abril de 2011

A Metempsicose na Série "Perdidos"

No 16º episódio da primeira temporada de Lost, Sawyer apercebe-se que anda a ser perseguido por um porco. Depois de ter sido atacado pelo animal duas vezes, a personagem parte à sua procura, querendo, obviamente, vingar-se. É então que o porco o irrita pela terceira vez quando remexe nas suas coisas durante a noite, enquanto Sawyer dormia. Porquê falar disto?

Atentemos no discurso que Locke profere a Sawyer quando toma conhecimento do sucedido:

«A minha irmã Jeannie morreu quando eu era um rapazinho. Caiu na jaula dos macacos e partiu o pescoço. A minha mãe… bem, a minha mãe adoptiva culpou-se, claro. Pensou que não estaria a observá-la suficientemente de perto. Então, parou de comer, parou de dormir. Os vizinhos começaram a comentar, temendo que ela tentasse alguma coisa… Seis meses depois do funeral da Jeannie, uma cadela de caça dourada veio pela nossa rua, entrou dentro da nossa casa, sentou-se no chão e olhou directamente para a minha mãe, que estava no sofá. E a minha mãe olhou de volta para a cadela. Depois de um minuto a olharem-se, a minha mãe caiu em lágrimas. Bonita cadela, sem marcas, sem coleira. Saudável e dócil. A cadela dormia no antigo quarto da Jeannie, na cama da Jeannie. E ficou connosco até a minha mãe morrer, cinco anos depois. Depois, desapareceu para onde quer que tenha vindo...»

No fundo, a personagem Locke quer dizer a Sawyer que a sua mãe acreditava que Jeannie era a cadela, que teria voltado para lhe dizer que parasse de se culpar a si própria pelo que acontecera. O porco que encarara Sawyer quereria, possivelmente, o mesmo. Estamos, portanto, a falar da teoria da metempsicose ou transmigração das almas que remonta à escola pitagórica (de Pitágoras, o filósofo que marcou essencialmente pela sua visão matemática com a afirmação de que «tudo é número», e dos seus discípulos), da Antiguidade Grega.

Em poucas palavras, a metempsicose afirma que a alma é um demónio atirado para a prisão do corpo e que, após a morte, separa-se deste para se ir purificar ao Hades; depois, regressa à terra para habitar um novo corpo. Durante essas transmigrações, as almas expiam as faltas que cometeram na existência anterior; quando são consideradas dignas de serem libertadas do ciclo das existências, conhecem uma vida divina imortal. Por isso, a escola pitagórica ficou conhecida pela interdição de qualquer alimento animal. O motivo é óbvio: os seus seguidores receavam poder comer o corpo de um parente ou de um amigo reencarnado. Pitágoras, por exemplo, proferiu, certa vez, as seguintes palavras: «Pára, não lhe bata mais, porque é a alma de um amigo que eu reconheci, ao ouvir a sua voz.»

Seria, no mínimo, diabólico pensar esta teoria como sendo verdadeira. Ainda assim, Sawyer, ao encontrar o porco fugitivo e ao encará-lo com uma pistola na mão direita, nada fez. A personagem deixou que o animal se fosse pura e simplesmente embora.

O conhecimento humano é limitado. Essa limitação não nos permite fazer juízos acerca de uma teoria como aquela que aqui foi apresentada. Tão-pouco sabemos se a alma, de facto, existe. Por via das dúvidas, como diz o povo, mais vale prevenir que remediar!


Sara Gonçalves