domingo, 9 de janeiro de 2011

"O Panóptico de Bentham - Ensaio sobre o projecto utilitarista"

«O Panóptico é o modelo do mundo utilitarista: tudo nele é só artificio, nada de natural, nada de contingente, nada que tenha o existir como única razão de ser, nada de indiferente. Tudo ali é exactamente medido, sem excedente, nem falta.» (TADEU, T., 2000, p.93)

1. Jeremy Bentham (1748-1832) foi um filósofo e jurista inglês que, juntamente com James Mill (1733-1836) e John Stuart Mill (1806-1873), concebeu o Utilitarismo, uma doutrina que será explicada mais à frente no desenvolvimento do nosso ensaio.

Este autor ficou conhecido em particular pela idealização do Panoptismo que servirá de objecto do nosso trabalho enquanto principal modelo do mundo utilitarista.

As principais ideias sobre o projecto encontram-se nas vinte e uma cartas de Bentham escritas em Crecheff, na Rússia, em 1787, a um amigo desconhecido. É a partir delas e de mais dois ensaios reunidos no livro O Panóptico, organizado por Tomaz Tadeu, que nos propomos analisar aquele que foi pensado para ser o dispositivo de vigilância mais eficaz do mundo.

2. Na filosofia de Jeremy Bentham, podemos definir o Panóptico[1] como um dispositivo de vigilância cujo modelo arquitectural pode ser aplicável às mais diversas instituições: prisões, hospícios, hospitais ou até mesmo escolas. [2]

Este dispositivo caracteriza-se por ser um edifício circular. No centro, encontra-se a torre do vigilante e, à sua volta, em cada andar, as celas. Cada cela tem uma janela feita de modo a deixar entrar o ar e a luz, mas ao mesmo tempo impede os prisioneiros de verem o exterior. Para o interior, existe uma porta gradeada que faz chegar o ar e a luz até ao centro.

Os princípios fundamentais da sua construção são a posição central que o vigilante ocupa e a sua invisibilidade para os prisioneiros que devem, a cada instante, sentir-se vigiados. Desta forma, o propósito do Panóptico assenta na eficácia: para a máxima proporção de tempo possível, cada homem deve estar sob inspecção. Podemos também afirmar que o projecto é económico na medida em que um grande número de pessoas pode ser observado por um único vigilante, pois a arquitectura do edifício assim o permite.

A forma como o edifício é construído sugere, portanto, uma ordem que deve ser seguida para que não haja qualquer falha. No entanto, arriscamos dizer que é na mente de cada um que está o verdadeiro poder e que é esse mesmo poder que destrói todos aqueles que são abrangidos pelo dispositivo.

Os prisioneiros sabem, em primeiro lugar, que estão a ser observados 24 horas por dia, porque crêem que na torre está sempre alguém que tudo vê. A sua cela é um lugar luminoso e escuro ao mesmo tempo; luminoso, porque a luz entra pela janela; escuro, pois dessa janela nada se pode ver do exterior. Digamos que a luz cega a vista. Além disso, a solidão que os prisioneiros sentem é devastadora. Eles sabem que estão sempre acompanhados, porém sentem-se sempre sozinhos.

No entanto, o Panóptico não afecta apenas os prisioneiros, produzindo igualmente resultados no vigilante. Tendo como única função garantir o bom funcionamento do processo de inspecção, este último acaba por se vigiar a si próprio e por sentir a mesma solidão dos que se encontram fechados nas celas. Apesar de haver um grande número de pessoas à sua volta, ninguém o vê enquanto se encontra no seu posto de trabalho.

Não obstante, este projecto vai mais além. Coloca-se a questão: será que ele afecta apenas quem vive dentro do edifício?

O alcance que o dispositivo quer atingir não se restringe apenas aos prisioneiros, nem tão--pouco ao vigilante. O Panóptico procura atingir toda a sociedade. Não como forma de castigo, mas como forma de disciplina. É aqui que entra o Utilitarismo do qual Jeremy Bentham foi precursor.

O Utilitarismo é a teoria ética que diz que uma acção é moralmente correcta se promover a felicidade e condenável se produzir a infelicidade. O seu princípio completo reside na ideia de que tudo deve servir várias vezes. O Panóptico, sendo um instrumento de usos múltiplos, vai ao encontro da moral utilitarista. Ele vale enquanto prisão, escola[3], asilo e, em cada cela, o recluso trabalha, come e dorme.

No projecto foi tudo minuciosamente pensado para funcionar e, consequentemente, para produzir um resultado.

Por se tratar de um conjunto de normas e regras coerentes referentes à doutrina utilitarista, podemos caracterizar este dispositivo como um sistema.

Procurando, desta forma, atingir o Todo, este projecto tem efeitos “exteriores” no sentido em que o seu objectivo também recai na moralização dos visitantes. Estes, ao saírem do edifício, levam consigo a ideia de uma disciplina perfeita. A forma como o edifício se apresenta, os efeitos de luz e contra-luz, a monotonia dos dias, tudo isto sustenta um ambiente de irrepreensibilidade que assusta. Quem vai a um edifício desta envergadura, não mais esquece o que viu. E a mensagem acaba sempre por passar.

Os prisioneiros, ao serem vistos pelos de fora, ficam envergonhados e é essa vergonha que acelera o seu processo de moralização, asseverando-se assim um círculo de disciplina perfeito.

Com isto, o “Panóptico de Bentham” atinge o seu fim: a expansão do seu poder ao universo, à humanidade. Sendo este modelo arquitectural útil, o melhor é usufruir dessa utilidade, fazendo bem ao mundo. Se a disciplina torna uma sociedade mais organizada, então, consolida as forças sociais e tem repercussões positivas a todos os níveis (económico, político, social…). Resta saber se dentro de cada pessoa impregnada no mundo do Panoptismo os efeitos são assim tão positivos. E se as consequências forem absolutamente destrutivas, há fuga possível?

Com este projecto o controlo é total e dele não há qualquer escapatória. Por envolver a humanidade, o Todo, é impossível escapar ao Panóptico. Só podemos combater algo exterior a nós; quando não há fuga possível, só resta a resignação. Neste caso, não há uma segunda opção, não há outro mundo no qual as pessoas se possam apoiar para combater o sistema.

3. Para Jeremy Bentham, o Panóptico é, como vimos, a solução para uma sociedade mais organizada. Um edifício construído sob o modelo panóptico é em tudo eficaz. Os gastos da sua construção acabariam por se tornar rapidamente em lucro. Além de se poupar com o número de vigilantes necessário para o seu funcionamento, no fim, não sairia mais caro do que aquilo que os países gastavam nos estabelecimentos existentes e em deportações.

Ainda assim, este projecto levanta-nos um número impreciso de questões filosóficas de cariz ético e moral. O dispositivo serve de modelo a uma sociedade ideal nos moldes da doutrina utilitarista. Quando se afirma tal coisa, apenas se pensa numa disciplina imposta de forma a criar uma sociedade que, impossibilitada de fugir ao padrão estabelecido, cria e produz com a máxima eficácia e vive sem quaisquer deslizes. A ideia do Panóptico é ainda mais aprazível quando nos apercebemos do seu poder limpo, que não suja nem provoca dor física. O que falta dizer é que, posto em vigor, apodera-se inexoravelmente da mente de cada ser humano.



[1] “Panóptico” vem de “Panoptismo” (pan = tudo; óptico = ver).

[2] São várias as obras inspiradas no projecto de Bentham. Como exemplos temos o castelo de Lancaster, no Reino Unido (ver anexos – figura 1); a prisão de Edimburgo, na Escócia (ver anexos – figura 2); e a prisão de Sligo (ver anexos – figura 3), na Irlanda.

[3] Segundo Bentham, o mestre ocuparia uma posição central e protegida de onde poderia observar cada gesto dos alunos. Estes últimos ficariam separados para que o seu estudo e trabalho fossem mais eficazes.

Sara Gonçalves

(Ensaio para Seminário de Estudo Orientado I - 2009/2010)

Bibliografia:

ECO, U., Come si fa una Tesi di Laurea, Milano, Valentino Bompiani, 1977 (tradução portuguesa: Como se faz uma Tese em Ciências Humanas, trad. A. Falcão Bastos e Luís Leitão, Lisboa, Presença, 200915).

FOUCAULT, M., Surveiller et punir, s/l, Editions Gallimard, 1975 (tradução portuguesa: Vigiar e Punir, trad. R. Ramalhete, Petrópolis, Editora Vozes, 199736).

TADEU, T. (org.), O Panóptico, Belo Horizonte, Autêntica, 20002.

http://pt.wikipedia.org/wiki/Jeremy_Bentham (consultado a 11 de Dezembro de 2009).

http://en.wikipedia.org/wiki/Panopticon (consultado a 11 de Dezembro de 2009).

http://pt.wikipedia.org/wiki/Pan-óptico (consultado a 11 de Dezembro de 2009).

http://pt.wikipedia.org/wiki/Utilitarismo (consultado a 11 de Dezembro de 2009).

http://dspace.lcc.ufmg.br/dspace/bitstream/1843/RAAO-6WNG4M/1/a_pedra_e_a_lei.pdf (consultado a 12 de Janeiro de 2010).

http://www.alfanos.org/pdfs/02_19th_philo_spr09/01_bentham.pdf (consultado a 12 de Janeiro de 2010).

1 comentário:

  1. Síntese decente no ponto de vista académico. Circunscrevendo-me apenas à tua dissertação,o "Panóptico" é uma pavorosa utopia (portanto, distopia). Compreende-se: naquele tempo era melhor (?) que as infernais condições a que eram sujeitos os condenados (leia-se "Os Miseráveis", de V. Hugo. Quanto ao utilitarismo posterior, Marx dedica-lhe umas linhas absolutamente devastadoras. Seja como for, é consensual considerar-se que o utilitarismo anglo-saxão exprime com cumplicidade transparente as relações económicas do capitalismo liberal.

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