segunda-feira, 28 de junho de 2010

A Vida é Breve - Prólogo

A Vida é Breve

Carta de Flória Emília a Aurélio Agostinho

Tradução de Maria Luísa Ringstad


«Quando visitei a Feira do Livro de Buenos Aires, na Primavera de 1995, recomendaram-me vivamente que reservasse uma manhã para a famosa feira da ladra de San Teimo.

Após algumas horas de arrebatamento diante das bancadas ao ar livre, acabei por me refugiar num pequeno alfarrabista. Entre uma modesta selecção de manuscritos antigos, os meus olhos foram atraídos por uma caixa vermelha que tinha uma etiqueta onde se lia: Codex Floriae. Algo despertou o meu interesse e abri a caixa cautelosamente. Lá dentro descobri um maço de folhas manuscritas que pareciam antigas, muito antigas, e verifiquei rapidamente que o texto era em latim.

Numa linha à parte, havia uma saudação inicial escrita em maiúsculas: «Flória Aemilia Aurelio Augustino Episcopo Hipponiensi Salutem.» Flória Emília saúda Aurélio Agostinho, bispo de Hipona... Devia tratar-se de uma carta. Mas seria realmente uma carta endereçada a esse teólogo e padre da Igreja que, a partir de meados do século IV, passou a maior parte da sua vida no Norte de África? E teria essa carta sido enviada por uma mulher chamada Flória?

Eu conhecia bem a biografia de Agostinho. Nenhuma outra figura mostra com tanta clareza a profunda mudança cultural que teve lugar na transição da antiga cultura greco-romana para a cultura cristã, que viria a caracterizar a Europa até aos nossos dias. A melhor fonte para conhecer a vida de Agostinho é, naturalmente, ele próprio. As suas Confissões (Confessiones, escritas por volta do ano 400) proporcionam uma visão única do agitado século IV, assim como dos seus próprios conflitos espirituais, relacionados com a fé e a dúvida. Agostinho é, talvez, o indivíduo anterior à Renascença que mais próximo de nós está.

Mas que mulher lhe poderia ter escrito uma carta tão extensa? Na caixa havia pelo menos setenta ou oitenta folhas. Eu nunca ouvira falar de um tal documento.

Tentei traduzir uma outra frase: «Como é estranho ter de te saudar nestes termos! Em tempos que já lá vão, teria escrito apenas "para o meu pequeno e divertido Aurélio".» Não estava muito certo da tradução, mas não restavam dúvidas de que esta carta evidenciava um tom muito pessoal.

De repente ocorreu-me um pensamento: poderia esta carta ser daquela mulher que fora a concubina de Agostinho durante anos; isto é, da mulher que ele próprio conta ter tido que deixar por ter escolhido abster-se para o resto da vida de todo o amor sensual? Senti um calafrio porque sabia bem que a única coisa que se conhece da tradição agostiniana sobre essa infeliz mulher ou sobre a sua longa convivência com Agostinho, é o que ele próprio escreve nas suas Confissões.

Passados alguns momentos o alfarrabista aproximou-se e apontou para a caixa. Eu estava ainda petrificado pela importância do manuscrito que estava a tentar avaliar.

Uma maravilha! disse o homem.

Sim, penso que sim...

Eu já tinha dado algumas entrevistas aos jornais e à televisão por ocasião da Feira do Livro e o homem reconheceu-me.


— El Mundo de Sofia?


Confirmei com a cabeça. Então o alfarrabista inclinando-se sobre a caixa, abriu-a e colocou-a em cima de um pequeno monte de outros manuscritos como se quisesse dar a entender que não estava muito interessado em vender aquele. Talvez ele tenha ficado um pouco mais receoso depois de se ter apercebido de quem eu era.

Uma carta a Santo Agostinho?perguntei. O seu sorriso denotava inquietação.

Acha que esta carta é autentica?

Não é impossível disse ele.Chegou-me ás mãos há poucas horas, mas se eu tivesse percebido que se tratava do manuscrito que realmente parece ser, não estaria aqui.

Como é que arranjou isto? O alfarrabista riu-se:

Se eu não soubesse proteger os meus clientes, estaria fora deste ramo há muitos anos.


Uma imensa curiosidade apoderou- se de mim.


Quanto pede por isto?perguntei.


Quinze mil pesos.

Quinze mil pesos pareceu-me um exagero por um manuscrito que, embora parecesse ser uma carta da concubina de Agostinho, tinha provavelmente apenas alguns séculos. Na melhor das hipóteses, podia tratar-se da reprodução de uma carta até agora desconhecida, para o padre da Igreja ou, mais provavelmente, da cópia de outra reprodução ainda mais antiga. Não se podia excluir a hipótese de ter sido escrita em algum convento latino- americano durante o século XVII ou XVIII. Verdade seja dita, até mesmo nesse caso era uma coisa que valia a pena levar para a Europa. Ouvi dizer que em certas comunidades religiosas os Santos Católicos escreviam ou recebiam, de vez em quando, este tipo de carta apócrifa.

Visto que o alfarrabista ia fechar a loja, apressei-me a apresentar-lhe o cartão Visa.

Doze mil pesosdisse eu.

Ofereci-lhe quase cem mil coroas norueguesas por uma coisa que, provavelmente, não tinha qualquer valor como antigüidade. Mas eu sentia uma grande curiosidade pelo manuscrito e não era, com certeza, a primeira pessoa que pagava caro pela sua curiosidade. Quando li asConfissões de Santo Agostinho pela primeira vez, muitos anos antes, tentei colocar-me na situação desta concubina. A visão que Agostinho tinha do amor entre homem e mulher impressionou-me profundamente.

O livreiro aceitou a oferta, dizendo: Acho que devemos considerar esta compra e venda como uma espécie de risco partilhado.


Mostrei-me surpreendido, porque não compreendi o que o homem pretendia dizer com aquilo. Então explicou-me:

Ou estou a fazer um negócio estupendo ou é o senhor quem está a fazer uma compra ainda melhor.

Registrou o cartão de crédito e disse com um ar sombrio:


Nem tive tempo de ler o manuscrito. Dentro de dias, o preço subiria consideravelmente ou eu mesmo atiraria esta caixa vermelha para o caixote do lixo que vê ali em frente.


O cesto que indicava estava repleto de livros de bolso velhos, e tinha um cartaz onde se lia: «2 pesos».

Fui eu quem fez o melhor negócio. O Codex Floriae é efetivamente dos finais do século XVI e foi, muito provavelmente, escrito na Argentina. A grande dúvida é se existiu, realmente, um pergaminho antigo a partir do qual foi reproduzido o Codex Floriae.

Mas estou absolutamente certo de que se trata de uma carta autêntica, escrita por aquela que foi a amante de Agostinho durante muitos anos. Não me parece possível que tenha sido falsificada na Argentina nos finais do século XVI. É mais natural aceitar que o original provém da época de Santo Agostinho. Tanto a sintaxe como o vocabulário usados no documento apresentam a marca inconfundível da antigüidade; o mesmo acontece com a mistura de sensualidade e reflexão religiosa quase desesperada que Flória deixa transparecer.»

...

Jostein Gaarder

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