sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Enxavada - prólogo

Enxavada

Terra de trabalho, solidariedade e todos os vícios.


Prólogo

"Alberto Mendes

Uma vida sem fim neste universo onde o espaço e o tempo não existem, onde apenas o hidrogénio e o seu funcionamento são vida.

Certo dia, Alberto Mendes saiu da sua pacata cidade a norte de Lisboa com destino a Espanha, mais concretamente Sevilha, para assistir a touradas e ouvir flamenco.

Nascido no seio de uma família pobre, deserdada, rural, Alberto ficou órfão muito novo. Tinha os seus oito anos de idade quando os pais morreram debaixo de um comboio na linha do Oeste, entre Caldas da Rainha e Torres Vedras. O tio-avô, de nome Carlos Mendes, tornou-se tutor do coitado do rapaz e levou-o para a quinta onde trabalhava perto de Runa. O dono da “Quinta do Sossego” era João Policarpo, um velho rabugento que depressa se deixou encantar pela inteligência de Alberto. Apadrinhando-o, fez questão que o rapaz prosseguisse os estudos.

O apoio que recebeu do senhor João ajudou o órfão a tornar-se um belo homem, vivaz e dotado de uma capacidade intelectual fora do comum.

Alberto Mendes conseguiu terminar o liceu e, mesmo enquanto estudava, nunca deixou de ajudar na quinta. Quando terminou os estudos, por lá ficou a trabalhar. Depois da morte de João Policarpo, a herdade passou para as mãos do seu tio Carlos. Alberto passava os dias a limpar o estrume dos animais e era sempre ele que ficava encarregue de ordenhar as vacas. Dessa forma, podia ouvir Beethoven e laborar ao mesmo tempo. De vez em quando, fazia uma pausa nos seus trabalhos para dar uma escapadela até ao pomar, onde se deliciava a comer as maçãs frescas que apanhava das árvores.

Um dia, fartou-se da vida no campo e procurou uma nova profissão, na cidade, um emprego que lhe desse um ordenado para poder comprar algumas roupas e, claro, livros. Na quinta, apenas tinha comida e o dinheiro que recebia das vendas do leite, ovos, frutas e legumes não chegava, muitas vezes, para tomar um café todos os dias na tasca da dona Alice. Conseguiu então um emprego na Biblioteca Municipal de Torres Vedras. Teve sorte! Pôde conviver com Eça de Queirós e Camilo Castelo Branco, os seus autores preferidos, e receber um bom ordenado, melhor do aquele que esperava um dia vir a receber.

Mais uns anos passaram. Alberto Mentes era homem de várias mulheres e, por isso, nunca casou nem teve filhos. Se os teve, não sabia. Sem nada que o prendesse à sua terra de origem e com um bom pé-de-meia no bolso, que foi juntando ao longo de muito tempo de trabalho, o bibliotecário, de 37 anos, decidiu começar a percorrer o mundo.

Passou dois anos a viajar pela Europa e voltou a Portugal. Ironia do destino, ou não, ganhou a lotaria com o pouco dinheiro que lhe havia sobrado das viagens. Partiu para os Estados Unidos da América, onde ficou por mais um ano. Farto de solidão e instabilidade, quis ficar, definitivamente, por Torres Vedras. Encontrou uma rapariga nova e bonita, de nome Almerinda, e pediu a sua mão em casamento. Mas Almerinda recusou. De coração destroçado, Alberto Mendes partiu. Novamente.

Rumo a Sevilha, já havia passado Mértola, quando se enganou e seguiu por estrada mais directa. De repente, deu por si com uma manada de touros bravos a correr à sua frente. Prenúncio do lugar onde iria chegar.

Quando o viajante começou a descer uma estrada cheia de curvas e ladeada de muitas árvores, deu de caras com uma enorme placa, onde estava escrito “Enxavada – Terra de trabalho, solidariedade e todos os vícios”. Seria aquele lugar real?

Entrou na terra pela mesma estrada que o havia trazido até ali. Deparou-se com prédios místicos, antigos, mas muito bem cuidados. Eram todos de semelhante arquitectura. Tinham apenas dois andares, sendo o rés-do-chão ocupado por lojas, livrarias, cafés, restaurantes, bares e tabernas, de onde se ouvia música. Era portuguesa, mas o homem não reconheceu a voz de quem a cantava.

Alberto Mendes, o viajante errante, abancou numa das muitas tascas da Enxavada. Aí deixou de ser apenas bom pensador e converteu-se em bom conversador. Começou desde logo a fazer perguntas ingénuas e inocentes acerca desta terra.

Foi então que apareceu Maravilha dos Santos, o Contador (era como lhe chamavam na terra). A partir daí, a memória invadiu o palco e todos os espectadores que se encontravam na tasca ficaram atentos e ansiosos por ouvir, mais uma vez, o relato de várias e distintas gerações, com todas as suas falhas, acrescentos e outras tantas verdades.

Foi numa noite, entre petiscos, vinho, comida, música, anedotas, mulheres, boa- -disposição, mas também algum cansaço físico, não fosse a Enxavada terra de trabalho, solidariedade e todos os vícios, que se encetou à descoberta daquele que era o melhor lugar do universo."

(Continua...)

2 comentários:

  1. Hoje ou amanhã vou trabalhar nela. Assim que tiver mais desafogada, envio-lhe um e-mail com a história... desta história!

    ResponderEliminar