quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

Enxavada - Capítulo I

Capítulo I

Não se deve correr à frente do vento; quando ele te ultrapassa, nunca mais o apanhas.

Havia um tal rei, de nome Sancho II, que não sabia como fazer justiça no reino. Dele faziam gato-sapato. Falo, claro, dos seus mui, mui nobres conselheiros. Quem não sabe que um rei justo é aquele que aplica a justiça e se faz rodear de bons conselheiros para que, dessa forma, possa julgar melhor? Até o príncipe de Maquiavel deveria saber escolher os mui nobres para estar a seu lado!

D. Sancho II não tinha bons conselheiros. Logo, D. Sancho II não era justo. Pobre homem, que falta de sorte tinha! Esses nobres que o rodeavam não souberam fazer jus ao seu nome no momento em que a tentação de recorrer a igrejas e mosteiros para adquirir meios económicos, difíceis de obter de outra forma, falava mais alto.

Foram, obviamente, os homens da Igreja a tomar a iniciativa de expor a situação em que Portugal se encontrava ao Papa. O rei não era de todo capaz de pôr fim aos abusos a que os eclesiásticos estavam sujeitos. Com a ruptura com a sua tia D. Berengária Sanches e o casamento com Mécia Lopes Haro nem a ajuda de Afonso de Castela lhe valeu. D. Sancho II, que começou por ser justo e acabou não o sendo, ficou ainda mais isolado a nível internacional - ele e Portugal - e mais vulnerável às investidas matutadas contra a sua regência.

Foi no ano de 1245 que desencadeou a guerra civil que opôs D. Sancho II ao seu irmão e futuro rei D. Afonso III.

Como segundo filho, e porque assim mandava a regra, Afonso não deveria herdar o trono destinado a Sancho. Como tal, querendo distância da miséria portuguesa, viveu em França e por lá contraiu matrimónio com Matilde II de Bolonha, em 1235. Por cá, os conflitos entre D. Sancho II e a Igreja tornavam-se cada vez mais insustentáveis…

No meio desta grande trapalhada, havia uma certa família de nobres em litígio com o rei e com o Papa. Sim, com o rei e com o Papa! O chefe de família era Álvaro Mateus que, com pouca paciência para aturar os devaneios da corte e com menos vontade ainda de se fazer fiel súbdito do Papa, pediu exílio a D. Sancho. O mui caridoso, que não queria mais chatices, já lhe bastava as que tinha!, ofereceu ao homem um tal território próximo da vizinha Espanha. Quanto ao Papa, já não havia nada a fazer. Nem a graça de Deus iria chegar para que Álvaro, antigo cavaleiro templário, ficasse do seu lado na luta contra o rei.

Álvaro Mateus não teve logo a paz que desejava. Antes de poder respirar de olhos fechados o ar puro da nova terra, ainda teve de enfrentar os castelhanos e os mouros. Da luta saiu vencedor e, com o seu coração solidário, substitui a punição pela requalificação. Grande homem, grande ideia utilitarista! Os prisioneiros tornaram-se mesmo trabalhadores contentes e satisfeitos com uma terra que, a pouco e pouco, lhes dava uma nova perspectiva de vida.

Com autonomia, Mateus fez crescer o lugar que lhe deram e que, por outro lado, conquistou. Contando sempre com a ajuda da mulher, dos filhos e dos homens que outrora o quiseram derrotar, plantou e semeou oliveiras, vinhas, trigo, cevada, centeio, milho, grão, uma grande variedade de legumes e de fruta. Foi trabalho árduo e os homens, que lá iam encontrando par pelas redondezas, viram no sossego da noite o seu maior remédio.

Não foi rápida a escolha do nome para a terra. Transactos uns tempos, foi posta a placa com umas letras que formavam a palavra Enxavada. Nome forte, de onde sobressai muito suor, muita dor, muita perda, mas também muitos frutos de um trabalho de entre todos e para todos.

Na terra de Álvaro Mateus, todas as religiões eram permitidas. Com o tempo, construíram-se igrejas, mesquitas e templos para que todos pudessem rezar ao seu deus ou aos seus deuses. Tudo era possível, pois proibidos estavam de lá entrar todos os que fossem mandatários do Rei ou apoiantes do Papa. Exílio era exílio. E, se soubesse que era assim tão bom, o homem já o teria pedido há mais tempo!

Na Enxavada não havia riqueza. Não havia corrupção. Isto é, não havia ouro. O produto do trabalho de cada um era investido em actos de solidariedade e, quando a doença estava adormecida, em momentos de lazer que, a pouco e pouco, foram entrando na vida nocturna dos habitantes desta terra.

A obediência existia, claro, mas restringia-se apenas às regras locais, estabelecidas entre todos: trabalhar, ser solidário e, sempre que possível, divertir-se.

A Enxavada tornou-se numa espécie de zona franca. Acolhia todos aqueles que se comprometessem a cumprir tais regras. Assim, os criminosos deixaram de ser criminosos, os pobres deixaram de ser pobres e os que lá chegavam doentes depressa se curavam com o ar pura e limpo de uma terra sem maldade, nem vaidade, nem poluição, nem corrupção.

Enquanto a Enxavada se erguia, novidades se desenrolaram: o Papa Inocêncio IV ordenou a substituição do rei D. Sancho II pelo Conde de Bolonha. Afonso não ignorou a ordem papal: dirigiu-se a Portugal e tornou-se rei, em 1248, após o exílio – bera exílio - e morte de seu irmão, em Toledo.

Bom, ninguém mandou D. Sancho II ser desleixado e tardo na justiça… Essa é que é essa! Não obstante, há males que vêm por bem. Assim, a estupidez de uns abriu portas à inteligência de outros.

Continua...

2 comentários:

  1. A coisa promete Sara. Gostei muito, de leitura fácil, mas com uma profundez intelectual perspicaz. Fico a aguardar os próximos capítulos, mas muito animado com o primeiro, a sério. A Enxavada corre o risco de se tornar a minha próxima morada…lol

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  2. Ricardo:
    Fico muito contente que tenhas gostado. Ainda esta semana vou tentar avançar mais um pouco... Não prometo nada, sabes que aqui a cabeça dura inscreveu-se para fazer melhoria a Filosofia Antiga. Tenho andado a estudar...
    Gostei, em particular, da última parte do teu comentário! Era bom que a Enxavada existisse na realidade, sim...

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