terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

A Filosofia Contratualista em "Lost"


"If we can't live together, then we're going to die alone."

Jack Shephard profere esta frase no episódio “White Rabbit”, retratando assim, de forma simples e directa, a necessidade que os passageiros do desastre do voo 815 da Oceanic (com saída de Sidney e destino a Los Angeles) têm de se ajudar mutuamente de forma a conseguir sobreviver numa misteriosa Ilha no meio do oceano Pacífico. “Se não conseguirmos viver juntos, então iremos morrer sozinhos” demonstra na perfeição que, na heterogeneidade mundana, a convivência pacífica é o principal pilar de suporte à existência. Contudo, todos sabemos o quão difícil é, por vezes, dividir o pão e abdicar do vinho. Vamos supor que somos um dos passageiros do avião despenhado e que, de repente, estamos numa ilha, com algumas dezenas de pessoas estranhas à nossa volta, todas na mesma situação: perdidas, sem saber o que fazer, esperando ansiosamente que chegue ajuda. As horas passam, a barriga começa a dar horas, o sono e o cansaço parecem querer vencer. Coloca-se a derradeira questão: como sobreviver a tal pesadelo?

Entre os séculos XVI e XVIII, emergiram, na Europa, teorias sobre um certo tipo de contratualismo que tentam explicar, de forma concreta, a origem legítima do nascimento de um governo. A par de John Locke (note-se que uma das personagens centrais de Lost é precisamente um homem com este nome que, na sua atitude perante a vida, demonstra ter muitas parecenças com o filósofo), Thomas Hobbes e Jean Jacques-Rousseau (que aparece na série como Danielle Rousseau) foram os principais precursores do contrato social.

Durante as primeiras horas passadas na Ilha, as personagens de Lost interpretam aquilo a que Hobbes deu o nome de «estado de natureza». Entre elas não existe uma autoridade soberana e, como tal, a segurança e a paz estão ausentes. Existe, contudo, uma distribuição equitativa quanto à capacidade que todos têm de vir a sobreviver e uma mesma esperança em atingir iguais fins, ao mesmo tempo, o que gera uma enorme desconfiança. Ao homem apenas pertence aquilo que ele é capaz de conseguir e durante o tempo em que for capaz de o preservar. Se Jack, Kate e Hurley quiserem comer a mesma manga, não há nenhuma lei que os impeça de lutar (seja de que forma for) por ela. «Com isto torna-se manifesto que, durante o tempo em que os homens vivem sem um poder comum capaz de os manter a todos em respeito, eles se encontram naquela condição a que se chama guerra; e uma guerra é de todos os homens contra todos os homens.» (HOBBES, pág.111) Percebe-se então por que anseiam as pessoas por um poder soberano: os seres humanos aceitam ser governados pela lei devido aos benefícios que isso lhes traz. Com um contrato estabelecido de forma racional entre todos, os indivíduos deixam de viver na solidão, na pobreza, com o perigo e a morte sempre iminentes. Na série, percebe-se perfeitamente que, talvez devido à sua calma, inteligência e capacidade de liderança, o soberano escolhido seja o médico Jack Sherpard. Quando não se quer acreditar em Deus, - ou porque ele nos abandonou, ou por outro motivo qualquer - crê-se num médico, que é, na Terra, o mais parecido que temos com uma divindade que tem ao seu alcance o poder de nos curar as feridas.

O papel de Jack não é de todo fácil. No fundo, ele está tão exposto ao perigo como Locke, Jin, Michael, Sawyer ou qualquer outro e, no entanto, todos exigiam mais da sua pessoa: se o médico falhar, perde todo o direito de governar e os súbditos podem considerar como dever derrubar o soberano que errou. Falamos aqui da perspectiva lockiana sobre o exercício do contrato social. John Locke demonstra ter esta mesma crença particular sobre o direito de rebelião em caso de tirania, quando, por exemplo, Juliet sugere a Jack trair Ben no videotape.

Jean-Jacques Rousseau também faz referência, na sua obra, a um dogma negativo que vai contra a essência do contratualismo: a intolerância. Para o filósofo suíço, o contrato social não oferece apenas segurança, como também a vontade racional de uma comunidade – a vontade geral. «Enquanto vários homens reunidos se consideram como um corpo único, eles têm uma única vontade, relativa à conservação comum e ao bem-estar geral. Então, todos os mecanismos do Estado são rigorosos e simples, as suas ideias mestras são claras e luminosas, não há interesses duvidosos ou contraditórios, o bem comum aparece sempre com evidência e não é necessário mais do que simples bom senso para o apreender.» (ROUSSEAU, Livro IV, capítulo I - pág.104) Portanto, para que os sobreviventes que se encontram na Ilha consigam viver de forma pacífica, respeitando um contrato feito no momento em que todos, sem excepção, se sujeitam a determinadas regras de sobrevivência, a intolerância não pode ser em momento algum permitida.

Os personagens de Lost encontraram uma força que até então desconheciam ter e têm de confiar de forma imperativa uns nos outros para poder sobreviver. Há que ter fé em Jin que, com a sua astúcia, irá conseguir apanhar peixes para o jantar, caso contrário será necessário arranjar uma outra forma de obter comida. O certo é que, se já é difícil conseguir viver em sociedade num local dito normal, é quase impossível levar a tarefa a cabo numa Ilha onde existe um “monstro” misterioso; aparecem, de vez em quando, ursos polares (imagine-se!); têm-se visões e ocorrem acontecimentos estranhos; não esquecendo, claro, as misteriosas personagens, mais conhecidas como Os Outros.

Além do misticismo, há, de facto, toda uma filosofia subjacente à série. Poderíamos falar ainda de inúmeros outros aspectos, como, por exemplo, a perspectiva de John Locke de que a mente dos homens é uma tabula rasa (um dos episódios tem mesmo este nome) ou um “papel em branco”, e que todo o conhecimento humano provém das experiências humanas. Há uma declaração da personagem no episódio ‘"In Translation" que transmite claramente essa ideia: «Todos ganham uma nova vida nesta ilha, Shannon. Talvez seja hora de começares a tua.» Além das parecenças entre Locke, o filósofo, e Locke, o personagem, Danielle Rousseau também desperta algumas semelhanças com o autor de O Contrato Social, nomeadamente a ideia do nobre selvagem, (um homem, num estado selvagem, nasce inocente e puro até ser corrompido pela sociedade). Danielle pode ser vista como uma nobre selvagem - que viveu nesse mesmo estado por muitos anos - até que se viu obrigada a ajudar o grupo de Jack na luta contra Os Outros.

Poderíamos falar da filosofia de Lost o resto da noite (não sei se só uma noite seria suficiente...). Contudo, hoje, ficamos por aqui.

Sara Gonçalves

Nota ao leitor: Há um livro que trata da Filosofia dos Perdidos, se estiverem interessados. Podem ler sobre ele aqui: http://www.wook.pt/ficha/a-filosofia-segundo-perdidos-lost-/a/id/1421701.

Bibliografia:

HOBBES, Thomas, Leviatã (tradução portuguesa: Leviatã, trad. João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Silva, Imprensa Nacional Casa da Moeda, 2009.);

http://pt.lostpedia.wikia.com/wiki/Filosofia;

LAW, Stephen, Filosofia, Porto, Civilização Editores, s/d;

ROUSSEAU, Jean-Jacques, Le Contrat Social (tradução portuguesa: O Contrato Social, trad. Leonardo Manuel Pereira Brum, Mem Martins, Europa-América, 2003).


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