domingo, 27 de fevereiro de 2011

Uma Antevisão aos Óscares

Como apaixonada pela sétima arte, não poderia Adicionar imagemdeixar de fazer a minha antevisão dos Óscares da Academia de Hollywood.

Pela primeira vez num ano, consegui ver todos os filmes que estão nomeados para a categoria de “melhor filme” (prometi a mim própria que o faria para conseguir ser mais justa nas minhas críticas). Note-se que os dez títulos que a Academia nomeou desta vez arrecadaram mais de 1300 milhões de dólares só no mercado americano*, tendo sido Toy Story 3 o grande campeão de vendas de bilheteira.

Começo por enumerar desde logo três candidatos que mereciam arrecadar o Óscar: O Cisne Negro, O Discurso do Rei e A Origem. O primeiro pela forma brilhante como nos prende ao grande ecrã e nos faz, por vezes, suster a respiração; o segundo pelo seu todo elegante e por toda a coerência com que é conduzido; o terceiro pela inteligência com que se apresentou. Infelizmente, tanto o Cisne Negro como A Origem não parecem estar tão bem classificados na corrida como A Rede Social, a minha maior desilusão. Sinceramente, não percebo o grande aparato que envolve o filme de David Fincher (talvez a explicação se encontre mesmo no realizador conceituado ou no próprio vício do Facebook) que me fez, por mais do que uma vez, fechar os olhos. Acho-o verdadeiramente aborrecido. Contudo, reconheço que Finsher é o mais certo vencedor do Óscar de melhor realização e também a estatueta de melhor argumento adaptado deverá seguir por esta via.

Justiça seja feita, ainda que a estatueta seja entregue ao O Discurso do Rei (que poderá ser prejudicado por ser um filme totalmente inglês e não americano) ou siga para A Rede Social, não posso passar sem aplaudir O Indomável e 127 Horas. O primeiro representa tudo aquilo a que os irmãos Cohen já nos habituaram. O segundo surpreendeu-me pela positiva: não deve ser fácil prender a atenção do espectador quando o cenário é um buraco onde se encontra um homem preso a uma pedra durante 127 horas. Portanto, parabéns Danny Boyle. Destaque ainda para o brilhante papel de James Franco que, ainda assim, não chega à sublime interpretação de Colin Firth como Jorge VI de Inglaterra. Jeff Bridges (vencedor do Óscar de “melhor actor principal” no ano passado) não deverá arrecadar a estatueta mas, se tal suceder, também é merecido.

Não falei até agora de alguns filmes também nomeados, como Despojos de Inverno (o pior dos dez - representa uma América rural profundamente triste e cinzenta, que nada mais oferece do que um estado de espírito profundamente depressivo), Os Miúdos Estão Bem (uma boa história, mas não boa o suficiente para chegar sequer ao pódio) e The Fighter – O último round (Million Dollar Baby, do mesmo género, ganhou o Óscar; porém, este filme nem lhe chega “aos calcanhares”!). Sobre Toy Story 3 não há muito a dizer: vai ganhar o Óscar de melhor filme de animação e com muito, muito mérito.

Natalie Portman vai, com certeza, subir ao palco para erguer o Óscar de “melhor actriz principal”. Gosto de surpresas, mas aqui prefiro pensar que, pelo menos nesta categoria, irá acontecer o esperado, uma vez que a candidata mais forte a seguir a Portman é Annette Bening por Os Miúdos Estão Bem, que está mais do que farta de ver o seu talento reconhecido. Honestamente, se não vencer a bailarina de O Cisne Negro, prefiro que vença (sem grandes probabilidades de isso acontecer) Michelle Williams com a sua brilhante prestação em Blue Valentine – Só Tu e Eu (que é, aliás, a única coisa boa deste filme deveras deprimente).

Na categoria de “melhor actor secundário” estão na linha da frente Christian Bale (The Fighter) e Geoffrey Rush (O Discurso do Rei). Espero que ganhe o último. Vê-lo contracenar com Firth foi absolutamente delicioso! Quanto ao lado feminino, Helena Bonham Carter será uma justa vencedora deste Óscar (mais até do que Melissa Leo por The Fighter). Ainda assim, é importante não deixar passar em branco a interpretação de Hailee Steinfeld em O Indomável (uma rapariga de 14 anos que tenta fazer de tudo para vingar a morte do pai). A jovem consegue estabelecer uma enorme empatia com Jeff Bridges e Matt Damon (que não está nomeado para nenhuma categoria; no entanto, teve duas excelentes prestações – uma em O Indomável e a outra em Outra Vida).

Quanto àquela que é, de resto, uma das minhas categorias favoritas, lamento não ver a banda sonora de O Indomável como uma das candidatas ao Óscar. A meu ver, é a melhor de todas. Ainda assim, A Origem (de Hans Zimmer, um dos meus compositores favoritos), O Discurso do Rei (de Alexandre Desplat), A Rede Social (de Trent Reznor e Atticus Ross) e 127 Horas (de A. R. Rahman) são fortes e justos candidatos. Relativamente à “melhor canção original”, muito provavelmente irá vencer qualquer uma dos filmes de animação nomeados.

Não me sinto habilitada para falar de qualquer uma das outras categorias (lamento ainda não ter visto Biutiful com o grandiosíssimo Javier Bardem – do qual fiquei fã assim que vi pela primeira vez Mar Adentro -, nomeado para melhor filme estrangeiro).

Termino a minha crítica ansiosa que o relógio marque uma hora da manhã e na expectativa de que esta gala dos Óscares seja melhor – muito melhor, aliás – do que a do ano anterior. James Franco e Anne Hathaway, dotados de um grande carisma próprio de um bom actor/actriz, irão fazer por isso.

Sara Gonçalves

*Informação retirada da Actual do semanário Expresso de 26 de Fevereiro de 2011.

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Óscares 2011

LISTA DE NOMEADOS PARA A 83.ª EDIÇÃO DOS ÓSCARES

MELHOR FILME:
Cisne Negro
The Fighter - Último Round
A Origem
Os Miúdos Estão Bem
O Discurso do Rei
A Rede Social
Toy Story 3
127 Horas
Indomável
Despojos de Inverno

MELHOR ACTOR:
Javier Bardem, por Biutiful
Jeff Bridges, por Indomável
Jesse Eisenberg, por A Rede Social
Colin Firth, por O Discurso do Rei
James Franco, por 127 Horas

MELHOR ACTRIZ:
Annette Bening, por Os Miúdos Estão Bem
Nicole Kidman, por Rabbit Hole
Jennifer Lawrence, por Despojos de Inverno
Natalie Portman, por Cisne Negro
Michelle Williams, por Blue Valentine - Só Tu e Eu

MELHOR ACTOR SECUNDÁRIO:
Christian Bale
, por The Fighter - Último Round
John Hawkes, por Despojos de Inverno
Jeremy Renner, por A Cidade
Mark Ruffalo, por Os Miúdos Estão Bem
Geoffrey Rush, por O Discurso do Rei

MELHOR ACTRIZ SECUNDÁRIA:
Amy Adams
, por The Fighter - Último Round
Helena Bonham Carter, por O Discurso do Rei
Melissa Leo, por The Fighter - Último Round
Hailee Steinfeld, por Indomável
Jacki Weaver, por Animal Kingdom

MELHOR REALIZADOR:
Darren Aronofsky, por Cisne Negro
David O. Russell, por The Fighter - Último Round
Tom Hooper, por O Discurso do Rei
David Fincher, por A Rede Social
Joel Coen e Ethan Coen, por Indomável

MELHOR FILME DE ANIMAÇÃO:
Como Treinares o Teu Dragão
O Mágico
Toy Story 3


MELHOR FILME ESTRANGEIRO:
Biutiful (Espanha)
Dogtooth (Grécia)
In a Better World (Dinamarca)
Incendies (Canadá)
Outside the Law (Argélia)

MELHOR BANDA SONORA:
John Powell
, por Como Treinares o Teu Dragão
Hans Zimmer, por A Origem
Alexandre Desplat, por O Discurso do Rei
A. R. Rahman, por 127 Horas
Trent Reznor e Atticus Ross, por A Rede Social

MELHOR CANÇÃO:
Coming Home (Country Song)
I See the Light (Entrelaçados)
If I Rise (127 Horas)
We Belong Together (Toy Story 3)

MELHOR ARGUMENTO ORIGINAL:
Mike Leigh, por Um Ano Mais
Scott Silver, Paul Tamasy e Eric Johnson, por The Fighter - Último Round
Christopher Nolan, por A Origem
Lisa Chodolenko e Stuart Blumberg, por Os Miúdos Estão Bem
David Seidler, por O Discurso do Rei

MELHOR ARGUMENTO ADAPTADO:
Danny Boyle e Simon Beaufoy, por 127 Horas
Aaron Sorkin, por A Rede Social
Michael Arndt, John Lasseter, Andrew Stanton e Lee Unkrich, por Toy Story 3
Joel Coen e Ethan Coen, por Indomável
Debra Granik e Anne Rosellini, por Despojos de Inverno


A cerimónia dos Óscares irá decorrer já no próximo Domingo, na TVI, com apresentação de James Franco e Anne Hathaway. Não percam!

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

A Doce Esperança

Não me conformo com essas palavras

Que sussurras ao meu ouvido,

São aluviões de desejos não-realizáveis,

São sentimentos não-saciados,


Nomes que não correspondem

A qualquer realidade do agora

Ou a qualquer possibilidade

De um amanhã possível.


Mundo que dorme na insensatez

Da moralidade há muito desfeita,

Que se abraça a bem-pareceres

E cessa numa intragável comodez


Que assombra qualquer alma

Que não quer - mas que se conforma,

Vitória a toda esta hipocrisia mundana

Que nos separa com sua tão grande robustez!


Acordar num hoje solarengo,

Sem lugar à lobreguidão do ontem,

Viver a verdade escondida,

Minha querida e doce esperança!


Até pode o amanhã não ser possível,

Mas há um lugar onde o posso imaginar:

Dentro de mim; só tu e eu,

Sem bem-pareceres nem comodez,


Dentro de mim somos nós,

Lugar onde morrem as palavras,

Lugar onde se limpam os choros

Lugar onde nasce o maior dos sorrisos.


Este eu e tu que somos nós

Permanecerá mudo até ao dia

Em que o impossível virá possível

E os sussurros de outrora


Pronunciar-se-ão em voz alta,

Num grito estridoroso e culminante,

Num concretizar desta doce esperança

Que vive ininterruptamente no meu coração.


Sara Gonçalves

Braga, 22 de Fevereiro de 2011.

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

A Leveza do Não-Ser

Imagino-te na tela que fica ao fundo do corredor que atravessa a linha que separa os sentidos do mais profundo olhar. Sossego com a sua impermeabilidade que torna a distância entre ela e as minhas lágrimas infinita. Não posso deixar que me oiças chorar daí desse lugar onde moras. Longe de mim. Longe de nós. Não podes sofrer. Proíbo-te de sofrer.

Só eu posso sofrer. Escondida nas cortinas que envolvem este espaço vazio, deixo-me cair no chão, frio que nem pedra. Mergulho nos lençóis que conservam o cheiro dos sonhos que tenho vindo a sonhar desde o dia em que te vi pela primeira vez. O meu espaço é o vazio.

Calámos o desejo no momento em que os nossos peitos se preparavam para soltar o mais estridente dos gritos. Tal bramido iria fazer tremer tudo aquilo que nos rodeia. Pois que tremesse. Por fim, seríamos cercados pela doce paz, uma primavera interminável de canções e danças de pura felicidade. Sonhar é fácil. Difícil é esquecer que entre a realidade e a fantasia há apenas uma estrada íngreme, com buracos e lajes nas quais inexoravelmente tropeçamos e, por fim, caímos. Impotentes.

Imagina só se tentasses ser meu por um dia! Ao mundo seria acrescentado um ponto final. Não podes. Não podemos. Já é grande a nuvem negra que se avista. Talvez ela tenha estado sempre aqui, a envolver, discretamente, o céu azul que nos contemplava durante os nossos encontros em segredo. Talvez as estrelas já lutassem contra ela enquanto tentavam construir um cenário perfeito para um amor de igual perfeição. Entre esse cenário e o nosso amor só existe uma diferença: o primeiro é difícil e possível; o segundo é fácil, mas impossível.

Só vejo escuridão. Na minha vida, a luz vive escondida. Destrói-me saber que na tua também. Pensas em mim e lutas contra ti próprio e exclamas que não podes e pedes que o sentimento se cale e imploras que o amor se quede mudo até à perenidade. É esse inferno que vives nesse cemitério de afectos e respeito enterrados ainda antes de saberes o meu nome.

Olho em volta e chego à conclusão de que também eu decidi morar num cemitério. Não é igual ao teu. O meu é a solidão. É nesta solidão que posso chorar e esconder o que choro, esconder-me no meu próprio choro. Foram muitos os dias, foram muitas as horas e o tempo já cansa. É demais. Preciso de o matar.

Escuto agora o meu coração que, a pouco e pouco, se tornou o teu lar, o teu conforto. O meu coração é a tua casa. Será sempre.

Penso no que estarás a sentir neste momento. O mesmo que eu, talvez. Em silêncio, distantes, falamos um com o outro. Envio-te um «amo-te» que nunca pronunciei em voz alta, porque as palavras, uma vez proferidas, não se podem apagar. Talvez tenha sido esse o nosso erro. Dissemos tantas palavras com os nossos olhares que nunca mais as conseguimos arrancar da nossa vida. Agora, só me resta procurar um caminho que afugente esta dor. Minha e tua.

Estico o meu braço esquerdo e penso no quão irónico é o que procuro estar precisamente aqui, deste lado. Do lado do coração. Nesta cama, resta o peso de um corpo que a vida se encarregou de matar lentamente. Entre a mão que treme e o cérebro há uma luta renhida. A primeira quase vence. Quase. Lá fora, este dia é igual a tantos outros. Cá dentro, alguém sai vencedora ao ingerir a esperança num novo horizonte. Um horizonte onde talvez te encontre, um dia, de braços abertos, ansiando por me abraçar e manter-me assim, envolta nos teus braços para toda a eternidade.

Fecho os olhos. Só vejo escuridão. Porém, desta vez, a negrura é diferente. É leve. Tornei-me leve. Constato que posso voar e ordeno às minhas asas, frágeis como os artistas que desenham pela primeira vez a sua obra, que me levem até ti. Encontro-te. Estás a dormir um sono profundo. Abraço-te e quedo-me a teu lado. Ficarei assim até acordares, de manhã, e descobrires que um de nós tomou uma atitude. Sei que me sentiste. No momento em que a minha mão segurou a tua mão, houve um entrelaçar dos nossos dedos. Vês? Agora, já não há que temer. Encaixamo-nos na perfeição. Sim, eu fi-lo mesmo, meu amor. Parti para não mais te abandonar.

Sinto-te sempre. E sinto-me leve. Sempre leve. É esta a leveza do não-ser.

Sara Gonçalves,

Torres Vedras, 18 de Fevereiro de 2010.

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

A Filosofia Contratualista em "Lost"


"If we can't live together, then we're going to die alone."

Jack Shephard profere esta frase no episódio “White Rabbit”, retratando assim, de forma simples e directa, a necessidade que os passageiros do desastre do voo 815 da Oceanic (com saída de Sidney e destino a Los Angeles) têm de se ajudar mutuamente de forma a conseguir sobreviver numa misteriosa Ilha no meio do oceano Pacífico. “Se não conseguirmos viver juntos, então iremos morrer sozinhos” demonstra na perfeição que, na heterogeneidade mundana, a convivência pacífica é o principal pilar de suporte à existência. Contudo, todos sabemos o quão difícil é, por vezes, dividir o pão e abdicar do vinho. Vamos supor que somos um dos passageiros do avião despenhado e que, de repente, estamos numa ilha, com algumas dezenas de pessoas estranhas à nossa volta, todas na mesma situação: perdidas, sem saber o que fazer, esperando ansiosamente que chegue ajuda. As horas passam, a barriga começa a dar horas, o sono e o cansaço parecem querer vencer. Coloca-se a derradeira questão: como sobreviver a tal pesadelo?

Entre os séculos XVI e XVIII, emergiram, na Europa, teorias sobre um certo tipo de contratualismo que tentam explicar, de forma concreta, a origem legítima do nascimento de um governo. A par de John Locke (note-se que uma das personagens centrais de Lost é precisamente um homem com este nome que, na sua atitude perante a vida, demonstra ter muitas parecenças com o filósofo), Thomas Hobbes e Jean Jacques-Rousseau (que aparece na série como Danielle Rousseau) foram os principais precursores do contrato social.

Durante as primeiras horas passadas na Ilha, as personagens de Lost interpretam aquilo a que Hobbes deu o nome de «estado de natureza». Entre elas não existe uma autoridade soberana e, como tal, a segurança e a paz estão ausentes. Existe, contudo, uma distribuição equitativa quanto à capacidade que todos têm de vir a sobreviver e uma mesma esperança em atingir iguais fins, ao mesmo tempo, o que gera uma enorme desconfiança. Ao homem apenas pertence aquilo que ele é capaz de conseguir e durante o tempo em que for capaz de o preservar. Se Jack, Kate e Hurley quiserem comer a mesma manga, não há nenhuma lei que os impeça de lutar (seja de que forma for) por ela. «Com isto torna-se manifesto que, durante o tempo em que os homens vivem sem um poder comum capaz de os manter a todos em respeito, eles se encontram naquela condição a que se chama guerra; e uma guerra é de todos os homens contra todos os homens.» (HOBBES, pág.111) Percebe-se então por que anseiam as pessoas por um poder soberano: os seres humanos aceitam ser governados pela lei devido aos benefícios que isso lhes traz. Com um contrato estabelecido de forma racional entre todos, os indivíduos deixam de viver na solidão, na pobreza, com o perigo e a morte sempre iminentes. Na série, percebe-se perfeitamente que, talvez devido à sua calma, inteligência e capacidade de liderança, o soberano escolhido seja o médico Jack Sherpard. Quando não se quer acreditar em Deus, - ou porque ele nos abandonou, ou por outro motivo qualquer - crê-se num médico, que é, na Terra, o mais parecido que temos com uma divindade que tem ao seu alcance o poder de nos curar as feridas.

O papel de Jack não é de todo fácil. No fundo, ele está tão exposto ao perigo como Locke, Jin, Michael, Sawyer ou qualquer outro e, no entanto, todos exigiam mais da sua pessoa: se o médico falhar, perde todo o direito de governar e os súbditos podem considerar como dever derrubar o soberano que errou. Falamos aqui da perspectiva lockiana sobre o exercício do contrato social. John Locke demonstra ter esta mesma crença particular sobre o direito de rebelião em caso de tirania, quando, por exemplo, Juliet sugere a Jack trair Ben no videotape.

Jean-Jacques Rousseau também faz referência, na sua obra, a um dogma negativo que vai contra a essência do contratualismo: a intolerância. Para o filósofo suíço, o contrato social não oferece apenas segurança, como também a vontade racional de uma comunidade – a vontade geral. «Enquanto vários homens reunidos se consideram como um corpo único, eles têm uma única vontade, relativa à conservação comum e ao bem-estar geral. Então, todos os mecanismos do Estado são rigorosos e simples, as suas ideias mestras são claras e luminosas, não há interesses duvidosos ou contraditórios, o bem comum aparece sempre com evidência e não é necessário mais do que simples bom senso para o apreender.» (ROUSSEAU, Livro IV, capítulo I - pág.104) Portanto, para que os sobreviventes que se encontram na Ilha consigam viver de forma pacífica, respeitando um contrato feito no momento em que todos, sem excepção, se sujeitam a determinadas regras de sobrevivência, a intolerância não pode ser em momento algum permitida.

Os personagens de Lost encontraram uma força que até então desconheciam ter e têm de confiar de forma imperativa uns nos outros para poder sobreviver. Há que ter fé em Jin que, com a sua astúcia, irá conseguir apanhar peixes para o jantar, caso contrário será necessário arranjar uma outra forma de obter comida. O certo é que, se já é difícil conseguir viver em sociedade num local dito normal, é quase impossível levar a tarefa a cabo numa Ilha onde existe um “monstro” misterioso; aparecem, de vez em quando, ursos polares (imagine-se!); têm-se visões e ocorrem acontecimentos estranhos; não esquecendo, claro, as misteriosas personagens, mais conhecidas como Os Outros.

Além do misticismo, há, de facto, toda uma filosofia subjacente à série. Poderíamos falar ainda de inúmeros outros aspectos, como, por exemplo, a perspectiva de John Locke de que a mente dos homens é uma tabula rasa (um dos episódios tem mesmo este nome) ou um “papel em branco”, e que todo o conhecimento humano provém das experiências humanas. Há uma declaração da personagem no episódio ‘"In Translation" que transmite claramente essa ideia: «Todos ganham uma nova vida nesta ilha, Shannon. Talvez seja hora de começares a tua.» Além das parecenças entre Locke, o filósofo, e Locke, o personagem, Danielle Rousseau também desperta algumas semelhanças com o autor de O Contrato Social, nomeadamente a ideia do nobre selvagem, (um homem, num estado selvagem, nasce inocente e puro até ser corrompido pela sociedade). Danielle pode ser vista como uma nobre selvagem - que viveu nesse mesmo estado por muitos anos - até que se viu obrigada a ajudar o grupo de Jack na luta contra Os Outros.

Poderíamos falar da filosofia de Lost o resto da noite (não sei se só uma noite seria suficiente...). Contudo, hoje, ficamos por aqui.

Sara Gonçalves

Nota ao leitor: Há um livro que trata da Filosofia dos Perdidos, se estiverem interessados. Podem ler sobre ele aqui: http://www.wook.pt/ficha/a-filosofia-segundo-perdidos-lost-/a/id/1421701.

Bibliografia:

HOBBES, Thomas, Leviatã (tradução portuguesa: Leviatã, trad. João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Silva, Imprensa Nacional Casa da Moeda, 2009.);

http://pt.lostpedia.wikia.com/wiki/Filosofia;

LAW, Stephen, Filosofia, Porto, Civilização Editores, s/d;

ROUSSEAU, Jean-Jacques, Le Contrat Social (tradução portuguesa: O Contrato Social, trad. Leonardo Manuel Pereira Brum, Mem Martins, Europa-América, 2003).